Entrevistando um homem moribundo.

Marcelo Campos
11 min readNov 7, 2021

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A Metástase (do grego metastatis: mudanças de lugar, transferência) é a formação de uma lesão tumoral secundária a partir do desprendimento de células neoplásicas do tumor primário. Caminhando através do interstício, as células cancerígenas ganham uma nova via de disseminação, criando, assim, uma nova colônia. Durante o processo, as células malignas têm que superar os sistemas de controle do organismo para transpor seus sítios primitivos. A Metástase é o selo definitivo de mau prognóstico. É a manifestação clínica de um triste fim para uma longa história.

Viver sob a própria perspectiva é essencialmente o que nos torna humanos. Entendemos o mundo através dos nossos olhos, percebemos o ambiente por meio dos nossos ouvidos e sentimos o que sentimos porque, no fundo, somos apenas uma confusão de hormônios que, por qualquer motivo, se deu conta da própria existência, pensamentos e desejos.

Costumamos nos incomodar com os breves momentos em que somos acordados do transe hipnótico que sustenta nossa realidade, como quando alguém te lembra de respirar ou quando o seu reflexo no espelho ganha uma personalidade à parte que rivaliza com o seu próprio ego. Mas são nesses breves momentos de dissociação absoluta do real que mais nos aproximamos da essência de viver. Por mais que o incomodo de se deparar com a própria existência seja latente, é ali que humildemente reconhecemos que todos nossos desejos intangíveis habitam um corpo humano. Limitado, enjaulado e finito.

Sob a compreensão de que nossa psique é restringida pelo nosso corpo, nos tornamos mais humildes. Em tese, claro. Afinal, são poucos os momentos de introspecção que nos permitem inferir sobre o que de fato somos.

Foi em dezembro de 2020 que a vida decidiu me presentear com um desses momentos. Estava visitando meu pai pela última vez. Convivendo com um câncer em estado terminal, Romualdo estava abatido, cansado e sobrevivendo em um estado quase catatônico.

Sua vitalidade e força estavam drenadas. Seu cheiro era típico de alguém que estava morrendo. Nunca pensei que conseguiria destinguir com exatidão esse cheiro, mas ele estava lá. O mesmo cheiro da minha avó nos últimos dias. O mesmo cheiro da minha mãe na UTI.

Sua careca estava cortada por uma cicatriz que ia de orelha a orelha e a parte direita de seu crânio estava ligeiramente afundada. Romualdo se olhava no espelho e sequer pensava em recolher os cacos de sua auto-estima. Não reconhecia mais seu próprio reflexo, afundava junto da doença e duvidava de sua recuperação.

Apesar disso, fazia questão de soar otimista aos familiares mais próximos. Quase que em tom jocoso com sua própria personalidade. Isso porque meu pai era uma das pessoas mais pessimistas que já convivi. O perfeito exemplo do conservador que, antes mesmo de seguir a fé católica, seguia sua própria crença: a certeza absoluta de que amanhã será pior do que ontem.

A morte, no entanto, parecia haver sequestrado seu pessimismo. Sua teimosia também havia cedido. Sua nova personalidade era dócil e frágil. E, neste estado, e inevitavelmente com os nervos à flor da pele, decidi prestar uma homenagem digna à sua memória. Uma última entrevista antes do descanso final.

Entrevistador: Eu acredito que é inevitável não começar com essa pergunta. Na verdade é quase uma curiosidade pessoal. Mas você tem medo de morrer?

Romualdo: …não. Não tenho medo de morrer, Marcelo. Todos nós vamos morrer. Se há algum medo, é só como vou morrer. Todos os dias acordo nesta mesma cama, ligo a televisão e forço meu corpo a ficar de lado. Me alimento sentado nessa cama, mudo de posição novamente e encaro o teto. Não há nada pra fazer além de observar a morte na esquina. E é por isso que não tenho medo. Sinto a morte todos os dias em cada dor do meu corpo e a vejo quando me olho no espelho, então não é como se ela fosse um monstro desconhecido.

Entrevistador: Você comentou das suas dores, pai. Como seu corpo vem reagindo ao tratamento e como isso vem limitando a sua vida?

Romualdo: Diariamente sinto dores nas costas…

Entrevistador: Mas você sempre sentiu dores nas costas.

Romualdo: …É. Mas agora é diferente porque o tratamento é muito agressivo. Sinto dor no meu corpo inteiro, Marcelo, até em lugares que nem sabia que era possível doer. No começo da Quimioterapia sentia muitas dores nas pernas, mas com o novo remédio senti que elas migraram mais para o torso. De qualquer forma, não sei o que é levantar e ter mobilidade há algum tempo. Passo o dia inteiro deitado nessa cama apodrecendo... Fora isso, venho sofrendo diariamente com diarreia e um enjoo constante. Não sei mais o que é comer uma comida gostosa, mas não acho que isso seja um problema, não é como se eu tivesse qualquer apetite mesmo.

Entrevistador: E durante a quimio, o que você sente.

Romualdo: Muito enjoo e uma ausência inacreditável de controle sobre o meu próprio corpo. Acho que isso acontece porque o remédio costuma aumentar muito minha pressão já nos primeiros minutos.

Entrevistador: Engraçado, vovó também sofria de pressão alta e agora você. Acho que eu sequer sei a sensação de se estar com uma pressão sanguínea acima do normal. Como é?

Romualdo: …É um apito. Uma dor forte que se alastra pela sua cabeça e faz ela pesar. Quando o tratamento fica mais agressivo, o apito é tão alto e ensurdecedor que eu não consigo prestar atenção em mais nada, apenas na terrível sensação de não ter qualquer controle sobre o meu próprio corpo.

Após descobrir um enfisema pulmonar em 2011, Romualdo tardou a tratar sua doença e observou seu quadro clínico evoluir para níveis críticos. Em fevereiro de 2020, deu entrada em um hospital após ter o movimento de parte do corpo e fala comprometida. O diagnóstico foi severo: câncer pulmonar em Estágio IV, diversos cistos em seu torso e um tumor alojado em seu cérebro.

Levado às pressas para a mesa de cirurgia, Romualdo não teve tempo de avisar aos seus quatro filhos sobre o risco de sua operação emergencial. Lembro apenas de receber uma notificação às 22h de um sábado: “Te amo, filho”. Respondi apenas no dia seguinte falando que o amava. Era uma tentativa de curta despedida de quem sequer estava preparado para se despedir.

Dado como um caso perdido por dois médicos no hospital, piscou o olho, sentiu o sedativo fazer efeito em seu corpo e, quando acordou, havia vivenciado um milagre: o tumor no cérebro havia sido retirado e ele ganhara o direito à vida. A oportunidade de lutar contra o câncer e se despedir, lentamente, de todas as pessoas que amava.

Entrevistador: Antes de entrar em operação em fevereiro, você tentou me avisar da sua cirurgia de emergência. Aliás, tentou não, mandou apenas uma mensagem dizendo que me amava bem tarde na noite. Lembro até de estranhar a hora e o contexto da demonstração de afeto. Poucos meses depois descobri que você também mandou uma mensagem na mesma hora para a minha irmã apenas dizendo “Perdi o Pedrinho”. Como um pai arrependido, você também se considera um avô arrependido?

Romualdo: Você sabe que eu não fui um pai arrependido, né? Claro que a vida é muito mais livre quando você não é responsável por nada nem ninguém, e tudo bem se sentir preso às suas próprias escolhas de vez em quando, mas não sei se me consideraria um pai arrependido. Amei todos os meus quatro filhos de maneira incondicional e fui o melhor pai que consegui ser.

Entrevistador: Sim. E foi um bom pai.

Romualdo: …É. Mas o Pedrinho foi o meu primeiro e único neto. Você sabe como fiquei preocupado com a Carolzinha quando ela me contou da gravidez. Era tão nova, tão cheia de si e pronta pra comprar uma responsabilidade que ela não fazia ideia do tamanho... mas uma coisa que aprendi na vida é que liberdade e amor incondicional são duas das virtudes mais importantes de se ensinar aos seus filhos. Se pudesse, teria impedido sua irmã de ter sido mãe tão cedo. Mas como pais, nós erramos, por isso ensinar essas virtudes é algo tão importante. Sabendo que eu a amaria não importasse a circunstância, e entendendo que era livre pra fazer o que quisesse, Carolzinha decidiu ser mãe e me presentear com um neto. E mesmo sem viver a mais longa das vidas, eu ainda consegui ser avô.

Entrevistador: Assim como minha mãe.

Romualdo: É… assim como sua mãe.

Respiro fundo, fecho meus olhos e consigo escutar o barulho do mar, tal como o barulho do interior de uma concha. A brisa quente corta a faixa de areia e o dia está tão claro que, mesmo de olhos fechados, enxergo o avermelhado das minhas palpebras cerradas.

Me canso da vermelhidão e abro meus olhos. A luminosidade me cega temporariamente, mas sei que estou na Praia dos Anjos em Arraial do Cabo. O dia era estonteante e você tentava me ensinar a surfar. O objetivo era simples: remar com meus braços, entrar em uma onda e me equilibrar em pé em cima da prancha. Mas, claro, não simples o suficiente para uma criança de seis anos. Lembro de levar alguns caldos e apenas conseguir ficar em pé em cima da prancha uma vez.

Quando me recordo desse dia perdido da minha infância, lembro de outros dias perdidos da minha adolescência quando vi você repetir os mesmos ensinamentos ao Bernardo. Apenas um pai novamente ensinando ao filho como domar as ondas. Outra praia, outra cidade e outro estado, no entanto, éramos todos iguais.

A verdade é que sempre encarei a vida de Romualdo sob a minha própria perspectiva. Nada mais lógico considerando que ele era e será para sempre o meu pai. No entanto, foi necessária a sua partida para eu deixar egoísmos infantis de lado e enfim abdicar da exclusividade da minha própria narrativa. Foi no seu adeus que entendi: o prisma correto para entender a vida e a morte do homem morimbundo é compreender sua relação com seu filho mais novo.

Entrevistador: Fui a Arraial do Cabo recentemente e me lembrei de quando você me ensinou a surfar. Me ensinou não, né? Tentou me mostrar como se fazia.

Romualdo: Era um sonho antigo meu que você largasse essa mania de terno e gravata e fizesse algo de útil com a sua vida: viajar para as melhores praias do mundo a trabalho.

Entrevistador: …É, ficar em cima de uma prancha nunca foi muito a minha parada. Mas digo isso porque me recordo de ver a mesma cena se repetir com o Bernardo quando viajamos para Pipa e, nessa altura do campeonato, é inevitável pensar nele e não sentir um peso no coração. Penso como sua biografia, pai, é tão parecida com a de Bernardo. Você perdeu seu pai aos 4 anos e sempre deixou claro como esse momento foi importante para a sua personalidade. Agora parece ser a vez do Bernardo, que perde seu pai aos 6. Então, Romualdo, eu te pergunto: como foi ser o filho que perdeu o pai quando criança e, ao mesmo tempo, ser o pai que se despede de seu filho pequeno.

Romualdo: O destino tem sido muito duro com o Bernardo nesses primeiros anos de vida. Entendo como perder um pai tão cedo pode ser um caminho mais difícil. Sempre falei isso pra você, Marcelo: ter um pai pra explorar o terreno e te mostrar a melhor rota torna tudo muito mais fácil. É lógico que fico muito preocupado com o futuro do seu irmão, mas ele tem uma enorme família pra apoiá-lo nesses primeiros anos.

Entrevistador: Assim como você teve.

Romulado: …É, mais ou menos isso. Mas o ponto que me tranquiliza no final do dia é que se eu arranjei alguma forma de chegar até onde eu cheguei, imagino que o Bernardo também conseguirá traçar seu caminho sozinho. É mais difícil, e como sei que é MUITO mais difícil… Mas tenho certeza que a família que fica jamais deixaria seu irmão pra trás.

Barulhos de ventilador e cantos de bem-te-vi inundavam o ambiente. Seu quarto era claro e branco como um hospital. O cheiro indescritível de morte tomava o comodo. Desde que havia chegado em Natal talvez tenha visto o meu pai em pé duas ou três vezes. Ele passava o dia inteiro mudando de posição na cama e assistindo documentários baratos do History Channel. Quando desligava a TV, pegava o seu celular e acessava o único aplicativo na sua tela inicial: o YouTube. Por lá, tal como uma criança entretida com um vídeo do “Five Nights At Freddys”, assistia os mais deslavados devaneios da direita brasileira.

Ele nem sempre foi assim. Houve um tempo em que conversávamos sobre sociedade, política e economia de forma humana, mas esse não era mais o caso. Então, temendo discutir por coisas inúteis, puxei os mais diversos assuntos no nosso último dia juntos. Conversamos sobre a inevitabilidade do padecimento pela entropia, sobre o porquê colonizar Vênus seria mais produtivo do que colonizar Marte e realizamos outros exercícios de futurologia bobos. Não há nada como tentar entender o Universo uma última vez antes que, claro, as leis da física e a limitação humana determinem o seu fim.

Após essa longa conversa, me levantei, terminei de arrumar minhas malas e iniciei o processo de despedida. Três anos antes, lembro de realizar o mesmo ato com a minha avó e, com um certo conhecimento de causa, consigo afirmar que não há nada mais doloroso do que dizer um último adeus. Nada foi tão difícil na minha vida quanto me despedir do homem morimbundo.

Lembro do seu último abraço. Seu corpo era tão frágil, pálido e fraco que sequer conseguia sentir seus braços à minha volta. A verdade é que a vida lhe escapolia a cada segundo, mas Romualdo reunia todas as forças que podia para abraçar e se despedir de seus filhos.

Me levantei chorando e olhei pra trás uma última vez. Sabe, eu pecisava ver meu pai só mais uma vez. Lembro de ver seus braços cedendo à gravidade. Lembro também dos seus olhos cheios de lágrima. E como esquecer de um lívido “eu te amo, filho” circundando as paredes do seu quarto.

Após a mais longa e frutífera amizade que já tive, perdurando por quase 25 anos, me despedi de Romualdo Barbosa em seu último apartamento, na divisa entre os municípios de Paranamirim e Natal, batalhando pela sobrevivência contra o seu próprio corpo. Romualdo sobreviveria apenas mais dois meses após nossa conversa final, cedendo o direito à vida na mesma cidade em que sua mãe havia falecido: Natal. Sim, é uma ironia do destino ter morrido em uma cidade que literalmente significa “Nascimento”.

Me despeço de Romualdo com mais perguntas do que respostas sobre quem realmente era e qual foi sua verdadeira essência. Quantos desejos frustrados não teve? Quantos sonhos ficaram para trás? Quantas merdas escondeu sua vida inteira? Quantas aventuras sempre omitiu? Quantos amores ficaram no passado eternizados como estátuas no tempo? Impossível saber ao certo. O pouco que entendi sobre o meu pai foi me olhando no espelho, observando sua genética e personalidade moldarem 50% de quem sou. Foi olhando meu reflexo que percebi que alguns de seus piores defeitos foram herdados por mim. Mas também foi ao me ver no espelho que não me vi mais, apenas o vi. Me encarando parado e calado, sempre comigo, sempre ao meu lado.

E o meu medo maior é o espelho se quebrar.

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Marcelo Campos

Relatos pessoais narrados por uma voz dentro da minha cabeça.