Abundantemente Morte

Reflexões sobre finitude, solidão e existência. Editados em ‘20, os textos foram originalmente escritos em ‘16 e ‘17.

Marcelo Campos
11 min readAug 19, 2020

Em fevereiro de 2016 eu estava na estrada. O caminho que percorria era entre Natal e Fortaleza e faltavam três meses para eu completar vinte anos. No entanto, não nadava nos sonhos e desejos de um livro digno de Kerouac. Na verdade, eu me encaminhava, em um ônibus provavelmente fabricado ao final da década de noventa, para uma das maiores lições da minha vida: entender o que é a morte.

Ainda longe de compreender que o ego é aquela inabilidade de quebrar narrativas que construo sobre mim mesmo, observava em estado hipnagógico a caatinga seca percorrer meus olhos a oitenta quilómetros por hora. Inevitavelmente, rememorando aquela viagem agora, penso que lentamente o interior do Rio Grande do Norte se transformará no primeiro deserto brasileiro.

Mas sinto que estou fugindo do ponto. Estudava em Fortaleza e, nas férias universitárias, visitava a família do meu pai, que sustentava meus não tão luxuosos primeiros porres na capital cearense. Em um desarranjo familiar que me tomariam duas mil palavras para explicar, prefiro resumir da seguinte forma: minha avó me enviava mil reais por mês de sua pensão de viúva de militar. Meu dever? Tentar me formar em Economia pela UFC.

Aquela era minha primeira viagem, portanto, neste movimento pendular entre duas capitais nordestinas tão distintas entre si. Conhecia Natal, já havia morado por dois anos na capital potiguar e, depois dos meus primeiros oito meses de uma falsa independência financeira em Fortaleza, sentia a ausência das conversas com meu pai, das brincadeiras com meu irmão mais novo e dos reclames incessantes da minha avó.

Enquanto as vibrações das janelas do ônibus fisicamente conversavam com uma esburacada estrada nordestina, eu me forçava a fechar o olho. Era dia, uma idosa insistentemente tentava iniciar uma conversa comigo e, os dois dramins que tomei para cochilar durante as oito horas de viagem, atenuavam um quadro de inquietude e ansiedade na cadeira 27.

Enquanto me remexia irritado pelo assento, comecei a perceber que o ônibus lentamente reduzia sua velocidade. Estávamos em uma infernal linha reta entre os municípios de Açu e Lajes, nos arredores de Angicos. Mais ou menos naquele pedaço de Brasil que, se você decidir lutar contra os intrépidos espinhos da vegetação local, subir ao topo de uma rocha que geologicamente falando não faz o menor sentido estar posicionada ali e observar, mesmo com binóculos o seu entorno, concluirá que dificilmente há qualquer ser humano em um raio de 50 Km.

Isso se descontarmos aquele Motel que não tem clientes e claramente serve como fachada para lavagem de dinheiro de algum vereador de uma municipalidade local.

Mas voltando ao ponto: o ônibus reduzia sua velocidade e um trânsito começava a se formar em lugar nenhum. Os passageiros, até então absortos em suas vidas pessoais, começavam a olhar por cima dos ombros buscando alguma explicação de estranhos que compartilhavam de suas mesmas dúvidas.

O murmurinho, até então quase inaudível, começou a chamar minha atenção à medida que nos aproximávamos de um acidente de carro que parcialmente fechava a BR-304. Um Corolla 2009 havia capotado, um Gol da 5ª Geração havia encontrado solidez na robusta vegetação nordestina e, consequentemente, sanfonado seu motor e toda a parte frontal do carro mais popular do Brasil à época. Uma ambulância fechava parte da BR e um dos paramédicos tentava anunciar aos viajantes uma tragédia irrelevante para a vida de cada pessoa que ultrapassava aquele ponto da estrada.

No entanto, os silenciosos estranhos de múltiplas idades e histórias posicionavam suas cabeças em direção às janelas esquerdas do ônibus. E, ao invés de luto pelas vítimas do acidente, ou mesmo o medo de encerrar sua longa jornada existencial em uma estúpida batida de carro, os passageiros iniciavam conversas entre si. Narravam acidentes pessoais ou familiares, qualquer coisa que superasse a tragédia presenciada. Era uma mórbida competição onde ganhava o estranho com a história mais triste.

Eu pessoalmente não tinha nenhum grande trauma para contar. Talvez versando melhor: até tinha, mas não comparado aos difíceis anos que me aguardavam depois de presenciar aquela antropológica experiência sobre finitude. Mas para falar de dor, precisamos falar sobre a minha avó.

Dona Ivone era pedagoga por ofício. Uma das primeiras mulheres a estudar na PUC-Rio, quando a sede ainda era no Colégio Santo Inácio. Pegava um bonde no Catete, onde morava de favor, descia na São Clemente e moldava sua jornada profissional que, durante o mandato de Juscelino Kubitschek, chegaria ao seu auge.

O presidente do país, em um ato propagandista, visitando o colégio em que ela ministrava suas aulas. Decidiu entrar na sala que a minha avó ensinava crianças, que futuramente iriam compor a classe-média bolsonarista carioca, português e matemática básica.

E teria tido uma brilhante carreira como pedagoga. Casada com um aviador, apenas um filho para sustentar e, com todas as regalias militares em seu entorno, ela se transformava no perfeito exemplo da classe média alta brasileira.

No entanto, em um vôo entre Salvador e Rio em 1964, os equipamentos de um cambaleante avião da Vasp começaram a demonstrar sinais de defeito e, num piscar de olhos, a vida dos oitenta passageiros encontraram seu destino final: o Pico da Caledônia em Nova Friburgo. Meu avô foi o segundo passageiro que teve maior cobertura dos jornais locais do Rio. Me faz pensar que, nem mesmo em uma morte estúpida, você consegue ser o centro das atenções.

A morte do meu avô foi positiva, financeiramente falando, para a minha avó. Apesar de ter perdido um parceiro de vida, eu sempre enxerguei um utilitarismo exacerbado, quase avarento, em suas posições. Impossível saber se ela era menos arrogante, mais solícita e uma boa pessoa. O luto e a perda mudam a gente para sempre mesmo.

Sabendo que não poderia manter o emprego em uma escola de ponta do Rio e, ao mesmo tempo, criar o meu pai; minha avó tomou a única decisão que qualquer brasileiro tomaria: se demitiu e decidiu viver sua vida em função do filho. E assim o fez até se tornar a pessoa que conheci em 1996 e convivi até 2017.

Aqui falo sobre minha avó presa em seu próprio labirinto. Já aos 87 anos de idade, tendo viajado o mundo, se apaixonado na velhice e usufruído de frutos de desigualdade. Dona Ivone havia vivido tudo. Faltava-lhe o último espetáculo antes de voltar para a não-existência: sua própria morte.

O culpado por seu padecimento: um quadro de Alzheimer que se arrastava desde seus oitenta anos, mas que apenas decidiu demonstrar suas garras poucos dias depois de Dona Ivone completar seus 87. Idade que terá para sempre, enterrada no Cemitério Municipal de Natal.

Abaixo listo três textos. Escritos na época exata em que estão marcados, porém, editados (e talvez até demais) pelo autor que vos escreve. Aos sobreviventes: boa leitura. Aos desistentes em continuar nesta infinita prosa que não leva a lugar algum, deixo o recado de um especialista:

“Tanto num sentido geral quanto no exercício constante da desistência semeando um prazer saudável no dia a dia, desistir é uma conquista, um desafio reverso” - Craque Daniel.

Acordou já cansada. Quase como se tivesse madrugado em uma festa na noite anterior. Ela, contudo, não tinha mais idade para frequentar esses lugares.

Rastejou até a cozinha, onde, bem atenta, fitou todos os meus movimentos. Me fez a mesma pergunta que já havia realizado na noite anterior: “Marcelo, onde está a sua irmã?”. Antes que eu pudesse sair do meu escudo de indiferença, ela fez questão de bebericar o café da maneira mais irritante que conseguiu.

Respondi que a Carol estava no Rio e, por isso, não apareceria para tomar o café da manhã conosco. Ela concorda com a minha afirmativa lentamente e começa a realizar uma prece, provavelmente em nome da minha irmã.

Horas se passam. Ela pode ainda estar na mesa da cozinha. Talvez ela tenha se rastejado novamente para seu quarto. Quem sabe esteja assistindo televisão na sala. Eu simplesmente não notaria. É surpreendente como o ser humano pode tornar-se alheio à presença de uma pessoa que outrora teria lhe dado o prazer de uma boa conversa.

Cruzo com ela algumas vezes durante o dia. Cumprimentos protocolares são realizados. É difícil estabelecer qualquer conversa com uma pessoa que não consegue te escutar direito ou seguir sua linha de raciocínio.

Volto para o computador. Algo importante ocorreu no mundo. Uma pessoa ficou presa em uma mina de carvão na China. Sua família parece preocupada na reportagem, temem a sua morte. Isso me comove. Mesmo que todo dia eu assista a minha avó definhando e se aproximando do fim. O trabalhador chinês é tão novo ainda. Tem muito o que viver antes que possa, bem… morrer.

Desligo o computador e sento na mesa do jantar. Minha avó me pergunta se aquela menina, que ela já não consegue lembrar exatamente do nome, irá se juntar a nós para o jantar. Explico novamente que os dois mil quilômetros impedem que esse encontro ocorra. Ela concorda e esboça um sorriso amarelo. Quase como se compreendesse que havia me feito essa pergunta todo dia desde que cheguei para passar o fim de ano. Quase como se compreendesse.

Terminamos de comer e ela me pede para levá-la até sua cama. Aparentemente está muito cansada. A gravidade vem se tornando sua maior inimiga, talvez ainda perca para as formigas que, de vez em quando, sobem por suas pernas. Chegamos em seu quarto. Coloco-a de maneira que se sente apoiada na cabeceira da cama e então vou embora. Algum convite para uma festa irrelevante deve ter aparecido no meu feed do Facebook.

Enquanto eu ia, ela deitou-se ali: sozinha, no silêncio e no escuro. Sozinha, pois nunca prestou-se a cativar amizades durante a vida. O silêncio se devia ao fato de não existirem motivações para ligar a televisão e escutá-la até o inevitável padecimento pelo sono. O escuro era a licença poética. Quem precisa enxergar quando, ao tentar olhar para frente, apenas consegue-se ver a morte espreitando? Deve ter se perguntado ansiosa: “Será que a Carol estará na mesa amanhã?”. Ou talvez não tenha se perguntado nada. Talvez tenha apenas olhado para o teto em um silêncio absoluto. Nada para pensar ou falar. Apenas aguardando o inevitável.

Acabara de amanhecer o dia. Ele correu e abraçou suas pernas cansadas. Ela, sentada, observou o carinho espontâneo do menino. Ficaram ali em silêncio, eternizando, em minha mente, o verdadeiro significado de amizade.

A senhora havia recentemente completado 87 anos. Como presente ganhou o agravamento do seu quadro de Alzheimer. Havia se tornado agressiva e desligada. O menino tinha 4 e tinha sido diagnosticado com Síndrome de Asperger e estava em constante tratamento.

A senhora precisava do menino. Sua inquietude poderia provocar sua morte. Se sabotava fisicamente quase como se quisesse desistir da vida. Desde que a doença havia se desenvolvido relutava em receber cuidado dos familiares. Apenas comia quando o menino estava ao seu lado. A senhora apenas obtinha paz interna na presença de seu amigo.

O menino precisava da senhora. Sofrendo de um tipo mais fraco de autismo, tinha sérios problemas de socialização e demonstrações de afeto. Abraçava a senhora como se soubesse que ele mesmo precisasse daquilo. Nunca, em uma idade tão nova, compreenderia a completude do quadro e sua importância para a senhora, mas ele entendia que ela estava triste. Ele sabia que sua presença alegrava a senhora.

Por mais poético que tenha sido o esforço do menino, um dia a senhora partiu. Não é algo que ele pudesse evitar. É apenas a mais importante lição da vida sendo ensinada a ele tão cedo. Talvez se sinta culpado por não ter conseguido postergar mais um pouco a estadia da senhora em sua vida. Mas saiba, menino, a culpa não foi sua. A senhora já estava cansada e precisava mesmo ir embora.

A vida as vezes prega essas peças. Uma amizade eterna, mas que duraria tão pouco. Ao menos a senhora pôde sentir o gosto da felicidade mais uma vez. Já o menino viverá eternamente com uma dor no seu peito, um vazio inexplicável que eventualmente, em sua longa jornada, descobrirá ser apenas o custo de ter consciência sobre si: entender que um dia tudo morre.

Sentirá também saudade da primeira amizade verdadeira que conseguiu desenvolver. Um fim e um começo. Uma senhora e um menino.

A gente descia a Bulhões de Carvalho com as sacolas de compra. Você tinha comprado geleia de amora, prevendo que seria dedurada ao meu pai por ser diabética, comprou meu silêncio com um biscoito. E então, no atravessar das ruas, você decidiu me perguntar algo que ainda não sei responder: “Por que você me trata tão diferente da forma que um neto trata uma avó?”

É estranho cobrar amor de uma relação marcada pela dependência financeira. Mas com o passar dos anos, e algumas noites dormidas em sua cama por medo de algum filme de terror, acabaram criando um forte laço entre nós. Quando nos mudamos para Fortaleza e, apenas eu e você, tive que dividir o apartamento com a minha primeira roommate: Dona Ivone. Quantas tardes não foram despendidas naquela varanda da Alberto Sá conversando sobre as urgências e os últimos desenvolvimentos do Nada. No fim das contas são as melhores coisas de se divagar.

Meus dois últimos anos morando contigo foram hostis. Alguns sinais da sua doença começavam a aparecer. Já conversávamos menos e talvez sem muita profundidade. Por fim, nos seus dois últimos anos de vida, você voltou para Natal e fiquei em Fortaleza. Sentia, pela primeira vez em minha vida, a liberdade que apenas o Amex da Vovó poderia proporcionar.

Há um mês atrás te vi pela última vez. Debilitada, cansada, mas ainda lutando contra o fim. Sentei ao seu lado por 48h em uma cadeira desconfortável. Os barulhos dos equipamentos hospitalares me aterrorizam até hoje. Quatro indicadores diferentes que poderiam definir se você estava mais pra lá ou mais pra cá. Quando tive que voltar para Fortaleza e fingir que você não estava morrendo, lembro de encarar a porta do seu leito. Eu não sabia o que dizer, eu não sabia se você iria compreender. Eu só tinha certeza que aquela seria a última vez.

Respirei fundo e, com a mais hercúlea das forças, fiz o ar passar pelo meu diafragma da forma mais confiante que consegui: “Te amo muito, vó”. Escutei da sua voz mais exausta, encoberta por aparelhos respiratórios e tubos alimentares, um “te amo muito também”.

Entrei no carro da minha madrasta segurando o choro. Meu pai não tinha coragem de te visitar. E não o culpo. Anos depois, quando vi minha própria mãe entubada em uma UPA de Copacabana, desejei com todas as minhas forças nunca ter entrado naquela sala.

A medida que o carro começou a se distanciar do Hospital da Aeronáutica eu chorei como nunca havia chorado na vida. Não chorei assim no enterro da minha própria mãe. O ineditismo de sentir a presença de um final é avassalador. São momentos onde você se defronta com a morte. A pupila dilata, a traqueia embaraça e seu diafragma trava por alguns segundos. É possível ver no fundo do seu olho a descoberta que o vazio é inexorável à existência. Em choque e em prantos, os carros passavam por mim no final de mais uma estrada. Quilometro um da BR-101. Mas eu só conseguia repetir um mantra em minha cabeça até que, milagrosamente, se tornasse realidade:

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Marcelo Campos

Relatos pessoais narrados por uma voz dentro da minha cabeça.