A menina ainda dança

Só mais uma biografia de uma mulher desconhecida.

Marcelo Campos
6 min readOct 20, 2018
Foto tirada em 09/07/2018.

Nasceu em 1963. Filha de pais separados, sentiu na pele, como qualquer outro que passou por isso, a desarmonia e o descompasso de viver em duas casas diferentes quando criança. Independente disso, escolheu não escolher e viveu com sua mãe a maior parte de sua infância. Por seu pai, restou cultuar uma enorme admiração de sua personalidade e profissão. Viraria fotógrafa, décadas depois, guiada por esse senso, devidamente herdado do pai, de uma vontade destemida de documentar sua era.

Em 1968, sua mãe havia matriculado-a em um internato feminino de freiras, o Santa Marcelina. Tentando simplificar a vida, sua mãe, que recentemente casara com um rapaz bruto e violento, decidiu colocar a filha longe daquele ambiente pouco saudável. Mas, na tentativa de proteção, machucou. Márcia Dias se sentiu isolada, não só pelo internato ser no meio da Floresta da Tijuca, mas por se sentir esteticamente feia e por se sentir pouco amada. Aqueles anos assombrariam sua personalidade pelo resto de sua vida.

Migrou por alguns colégios na infância, a maioria com rígidas normas sobre conduta e, convenhamos, não há receita melhor para o desastre do que restringir um ser humano de ser quem ele quer ser. Desejando o estrago, Marcita ingressou na ECO-UFRJ em 1981. A partir daquele instante, ela enfim era quem queria ser: a perfeita soma genética da beleza, neura, personalidade e emoções de sua mãe e seu pai. Aquele arranjo de completude que enche os pulmões de oxigênio e a alma de vida. Aquela sensação única de que o mundo é seu, basta apenas vontade suficiente para conquistar cada centímetro dele.

No seu período na faculdade conheceu grandes amigos. Tive o prazer de chamá-los de tios e tias, de crescer com seus filhos, de conhecer seus pais e visitar a casa de cada um deles. Conseguiu libertar todo o amor reprimido pela moral cristã e a ausência familiar e canalizou em formar uma linda nova família adolescente. Viveu as loucuras que somente o universitário do final da Ditadura Militar tem ciência. Esteve na linha de frente da redemocratização de um país senil. O processo marcaria politicamente sua geração, e ela mesma, de forma incalculável.

Se formou em 1985 e engatinhou em uma profissão dominada por homens. Seu primeiro trabalho foi no Jornal Última Hora. Consistia em acordar as quatro da manhã, ser buscada em casa e levada até Nova Iguaçu. Ela só poderia arredar o pé de lá com uma tragédia devidamente fotografada. Estava presa no universo paralelo do noticiário local da Baixada Fluminense. Foi um período excelente para ela compreender que a vida era muito maior do que o eixo Tijuca - Copacabana.

Por ter que se provar melhor que os homens machistas de sua profissão, foi assediada em diversas oportunidades. A lista vai de Renato Gaúcho até Caetano Veloso. Também, por se demonstrar uma excelente fotógrafa, foi escalada em 1986 para cobrir a Guerra Civil Angolana. Embarcaram ela, dois jornalistas amigos, sua inseparável Nikon e um carregamento de água potável providenciada por minha avó, que sabia da raridade desse recurso em um país arrasado pelo conflito.

No final da década de oitenta, e começo da década de noventa, atingiu a adultês mental. Suas amigas começaram a ser mães. Ela começou a morar só, se sustentar e se envolver mais a fundo com seus parceiros, que deixaram de ser triviais diversões, e se tornaram aquela bomba emocional complexa que somente um relacionamento adulto pode oferecer. No carnaval de ‘93, esbarrou com o principal: meu pai. Permaneceriam juntos até ‘99.

Como a maioria dos homens da época, meu pai acreditava que o mundo era dele e só restava conquistá-lo. Mas não era. O mundo era da minha mãe, meu pai deveria ser apenas um coadjuvante no brilhantismo de uma mulher. Mas, convenhamos, se dói para os homens admitirem o segundo papel mais importante do relacionamento em 2018, imagine em 1993.

Alguns meses depois, minha mãe ficou grávida e o patriarcado terminou de assassinar seus sonhos. Após meses de pressão do meu pai, na tentativa de fazer Marcita virar uma dona de casa e, claro, uma desastrosa cobertura de uma operação policial na Tijuca; ela não teve mais escolha. Se demitiria ali e, a partir daquele momento, levaria seus dias na passividade que a impuseram.

Teve Carol em ‘94. Me teve em ‘96. Em ‘98 nos mudamos para Cabo Frio, onde meu pai tentaria estruturar uma empresa de informática. Tudo caminhava bem, até que não mais. Sabe como é, né? A vida e tal. Em ‘99 meu pai e minha mãe se separam. Em ‘01 a empresa do meu pai foi a falência e ele se casou com uma mulher mais nova e mais rica. Em ‘02 ele some do mapa por meses, deixando minha mãe, com duas crianças, praticamente sozinha. Em ‘03 minha avó morre. Era a primeira porrada segura que minha mãe levara na cabeça. A primeira, de uma série imperdoável, de severos golpes que levaria a partir dali.

Decidiu voltar com as duas crianças para o Rio. Precisou da ajuda de vizinhos para chegar na capital. De volta ao local onde nasceu, se deparou com a terra arrasada com a sua escolha errada de dez anos atrás. As máquinas fotográficas se tornaram digitais, ela virara um dinossauro analógico no século XXI. Estava completamente perdida no tempo e espaço. Dormia, acordava, alimentava as crianças, ou não, e dormia novamente. Uma moribunda sentindo o peso do mundo em suas costas.

Antes de reagir, entregou as crianças para o pai no final de 2005. Conhecia sua completa inépcia em cuidar de dois filhos naquele momento. Nos anos seguintes forçara momentos de reação. Decidida a arrumar qualquer emprego, trabalhou em uma feira de turistas em Copacabana. Não durou muito.

Em 2007, o dinheiro acabou. Era a hora de levar mais uma porrada. Ainda moraria em Copacabana, mas, dessa vez, no alto. Decidiu, para não deixar o bairro onde cresceu, morar na favela mais próxima. Em 2008, mais uma porrada. O pai de seus filhos, decidiu, não só exercer a guarda concedida em 2005, como preferiu levá-los para o Nordeste. Agora não tinha mais mãe, não tinha mais dinheiro, não tinha mais status de endereço e tampouco filhos para se consolar.

Em 2009, talvez no fundo do poço, quase morreu na invasão de bandidos da Rocinha na favela onde morava. Em 2010, sete anos depois de se desestruturar por completo, depois de ter passado fome e ter perdido o controle sobre sua própria vida; a maré mudou. Arranjou um emprego de empacotadora no supermercado de classe baixa do bairro. A dignidade conquistada foi o suficiente para o regresso da filha mais velha, que daria um novo folego e significado para uma pessoa que já estava extremamente cansada da vida como um todo.

Em 2012, acolheu seu cunhado, filho de classe-média alta que, na época, fora renegado por sua própria família. Conseguiu ser promovida para a mercearia do supermercado. Era responsável por carregar quase 2 toneladas de alimentos por dia. Nessa época, retirou um rim e sentiu o peso da idade. Fumante há quase quarenta anos, um órgão vital a menos e um trabalho braçal; realizavam a tarefa de reduzir drasticamente sua expectativa de vida. Tentando evitar a morte que se avizinhava, se demitiu e conseguiu um trabalho mais calmo como caixa de uma loja de roupas.

Em 2016, virou avó. A vida, que já não tinha muito sentido, ganhou outro significado. Por mais que tivesse estudado para ser jornalista e mais uma representante da vibrante classe-média carioca, vestira a camisa de classe baixa e vivia das pequenas alegrias que a vida ainda podia proporcionar. Brincar com o neto, queimar um feijão e dormir a tarde; funcionavam como a própria alforria dos erros do passado. A vida simples de uma pessoa complexa. Trágico, porém poético.

No ano seguinte, se demitiu para cuidar do neto. Não queria que a filha colocasse seu futuro profissional em risco. Não queria que a filha cometesse o mesmo erro que ela mesmo cometera. Aproveitou o período e estreitou laços com o pequeno indivíduo. Utilizou seus primeiros anos de vida como um lembrete das razões pelas quais valiam a pena acordar todo dia. No mesmo ano viu o regresso de seu filho mais novo. O natal de 2017 foi, provavelmente, o dia mais feliz de sua vida. Tinha tudo ao seu alcance novamente. A casa estava apertada, a situação financeira era desconfortável, mas ela tinha todo o amor que houvesse nessa vida. Viveu apaixonada com a vida mais uma vez. Viveu assim até morrer dez meses depois. Num erro matemático simples, exagerou nos remédios e seu corpo debilitado cobrou a conta.

Olhou para o teto do hospital e sentiu os sedativos fazerem efeito em seu corpo. O pulmão estava contraído e o músculo fatigado. Lutava para respirar mais uma vez. Tentou abrir os olhos. Não conseguiu. Mas, mesmo no último momento, sua música favorita cantava sua vida: “e se você fecha o olho, a menina ainda dança”.

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Marcelo Campos

Relatos pessoais narrados por uma voz dentro da minha cabeça.